quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Milk




Com o comentário/apreciação de vários filmes em atraso, hoje é dia de Milk. Não vou falar da primorosa interpretação de Sean Penn (se houver alguma justiça premiada com o oscar) e da óbvia colagem das personagens às figuras reais (as parecenças físicas chegam a impressionar, ao contrário da ficção nacional, na qual já faltou mais para vermos Soraya Chaves a fazer de D. Afonso Henriques). Também não vou falar de Gus van Sant que uma vez mais dá provas do seu imenso talento e da montagem perfeita que permite que não se note a mistura de imagens reais com as de ficção. Tudo isso acaba por ser secundário face à mensagem do filme. E aqui não pensem que me refiro à defesa dos direitos dos homossexuais. Essa é a questão que me parece “menor” naquela história. O que ali está em causa é a defesa da liberdade e da igualdade de todos os Homens perante a lei (homens e mulheres, brancos e pretos, cristãos, judeus e muçulmanos e, lá está, heterossexuais e homossexuais). Por isso é tantas vezes repetido o corolário da Constituição Americana “all man are created equal”. Por isso, também, a certa altura vemos Milk dizer ao seu colega/rival White que aqueles que na década de 70 defendiam menos direitos para os homossexuais eram os mesmos que anos antes tinham defendido a discriminação dos católicos irlandeses (como White) pelo simples facto de serem “diferentes”, ou seja, irlandeses e católicos.

E aqui reside a questão fundamental com a qual temos que lidar. Justificar hoje, com qualquer fundamento, a discriminação de alguns permitirá que no futuro sejamos nós a ser discriminados. A história ensina-nos que sempre que uns homens pensaram ter mais direitos que outros, tal ideia conduziu a situações de escravidão, tirania e profundo desrespeito pelas pessoas que eram consideradas “diferentes” e às quais eram negados os mais básicos direitos, como seja a vida ou a liberdade. Infelizmente, há exemplos para todos os gostos. A subalternização da mulher (só por ser mulher) ao longo da história. A inferiorização dos negros (só por serem negros) durante vários séculos. A violência exercida contra os judeus (só por serem judeus) no III Reich. Etc, etc, etc.

Assim, o ponto que mais me tocou na história de Milk é a defesa acérrima da liberdade e da igualdade de todos os homens perante a lei (a tal Isonomia que nos ensinaram os Atenienses), para lá de todo o exagero panfletário da “causa gay” (que, curiosamente, o filme também nos ajuda a perceber a raiz história de alguns dos exageros “festivaleiros” que vemos hoje).

Posto isto, passo ao tema que agita a sociedade portuguesa: o casamento homossexual. Em primeiro lugar, a declaração de interesses: sou a favor do casamento (ou da união, o que lhe quiserem chamar, conquanto que os direitos conferidos a homossexuais e heterossexuais sejam os mesmos). Em segundo lugar não posso deixar de considerar que, neste momento em Portugal, ainda há tantas Liberdades que nos faltam, que fazer desta um cavalo de batalha é pouco, mas enfim. Além disso, parece-me ser um tema que não merece toda a atenção que está a ter. Em qualquer sociedade “normal” seria uma decorrência natural do princípio da igualdade e não daria tanta conversa e troca de argumentos.

Quanto aos argumentos “contra”, compreendo grande parte deles, e admito que têm alguma validade. É verdade que ao admitir que o casamento pode ser contraído por dois homens (ou duas mulheres) estamos a abrir a porta a casamentos poligâmicos (porque não?) e ao fim de todos e quaisquer impedimentos dirimentes ou impedientes. Confesso que nenhuma destas consequências me assusta particularmente. Como já disse, e repito, não gosto do instituto jurídico do casamento civil, que permite ao Estado meter o bedelho na vida privada dos cidadãos, e criar os seus modelos pré-fabricados de família (mais ou menos tradicional) em nome de um suposto bem social que advém do facto de duas pessoas (de sexo diferente) celebrarem entre elas um contrato de casamento perante um conservador do registo civil. Não acredito que assim seja. Para mim tem o mesmo valor intrínseco (e consequentemente o mesmo valor social) o casamento civil, a união de facto ou a mera “comunhão de afectos” (esse nome para lá de parolo, mas não sei que formulação mais civilizada utilizar) entre duas pessoas (que não cumpram os requisitos legais da união de facto).

Por esse motivo, para mim é-me igual um homem querer celebrar um contrato com outro homem para regular as suas obrigações patrimoniais, assistenciais ou outras (excluindo obviamente a questão da filiação, que não pode estar à disposição da liberdade contratual), um homem celebrar o mesmo tipo de contrato com várias mulheres (desde que a vontade de todas seja nesse sentido) ou um homem e uma mulher fazerem exactamente o mesmo, na versão mais “tradicional” da “coisa”. Para mim o ponto está, pois, na liberdade contratual (salvaguardados os direitos de terceiros) e na vontade das partes, como em qualquer outro contrato.

Por último, apenas uma nota sobre a posição da Igreja nesta matéria. Compreendo e aceito todas as opiniões da Igreja Católica quanto à homossexualidade, numa perspectiva de fé e de moral cristã. Acho também perfeitamente natural que a Igreja, que apenas concebe o matrimónio com a finalidade da procriação, o negue a uniões objectivamente estéreis. Aceito que a Igreja fale aos seus fiéis e que procure salvar as suas almas do pecado (é essa, no fundo, a sua missão). O que não consigo compreender é porque motivo a Igreja entende que o Estado (que é laico) e que legisla para todos os cidadãos (crentes ou não) tem que assumir como boas as suas considerações a propósito do casamento e da família. As leis civis são exactamente isso: civis. Não se regem por imperativos de fé ou de moralidade. Devem ser neutras e permitir a todos viver de acordo com a sua consciência, desde que com respeito pela liberdade alheia. E voltamos ao princípio, se hoje a Igreja quer o Estado ao seu lado, a defender uma visão de casamento que é sua, não se pode admirar de amanhã ter o Estado contra si, defendendo o oposto e proibindo, por exemplo, os cidadãos de receberem, livremente, o sacramento do matrimónio ou da eucaristia (seria totalitarismo, é um facto, mas a história ensina-nos que pode acontecer). Impor um padrão moral hoje, permite impor exactamente o inverso amanhã!

E termino este longuíssimo texto com uma frase que deveríamos ter sempre presente, escrita pelo punho de Thomas Jefferson e que abre a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América: «We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the Pursuit of Happiness

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