Eu li o Relatório do FMI, inteirinho, do princípio ao fim. É um bom documento de trabalho que faz uma análise séria do que é o "monstro". Faltam ali algumas coisas, mas muitos dos nossos problemas estão ali bem retratados.
Como método de trabalho, à medida que lia o Relatório, fui construindo uma tabela. De um lado ia pondo as medidas positivas e do outro as medidas negativas. Cheguei ao fim com a primeira coluna cheia e a segunda com nem meia dúvida de chavões assustadores - cortes cegos nas pensões, subida genérica das taxas moderadoras ou despedimentos generalizados de professores.
São ideias, em si, assustadoras, obviamente. Ninguém de bom senso defende um corte de 20% numa pensão de duzentos e poucos euros. Como ninguém com o mínimo de preocupação social defende o aumento generalizado das taxas moderadoras para todos.
Daí a rasgar as vestes dizendo que o Relatório mata o Estado Social (o Relatório não mata nada, desde logo porque não é lei nem regulamento, é apenas um documento consultivo de carácter técnico) e que é o demónio encarnado, parece-me pouco sério.
Desde logo, como disse, este é um documento que lança sugestões, as quais terão que passar pelo crivo político do Governo e do Parlamento. Depois, porque para além de 3 ou 4 propostas mais "assustadoras", o que o Relatório nos dá é uma visão bastante esclarecedora de alguns dos motivos pelos quais chegámos aqui.
Há funcionários públicos a mais? Claro que há! Dizia-me aqui há uns tempos alguém que conhece bem a máquina da Administração que, se calhar, temos 30% a 40% de funcionários a mais (numa estimativa conservadora).
Os funcionários públicos eram uma classe privilegiada face aos trabalhadores do sector privado (CGA, ADSE, horário de trabalho, estabilidade labora´l, etc)? Claro que eram e ninguém o pode negar. E, a ver pelo Relatório do FMI, apesar dos cortes, continuam a ser.
Há classes claramente privilegiadas dentro do Estado (juízes, militares, diplomatas e magistrados)? Claro que há! E faltarão aí com certeza mais umas quantas classes com benefícios que nós nem sonhamos e que nunca deveriam ter existido!
Há professores a mais (e já agora escolas a mais) para um país com a mais baixa taxa de natalidade da Europa? Obviamente que há! Vamos continuar a diminuir o número de alunos por turma até termos um professor para cada criança?
O sistema que permite que a média das pensões da CGA seja de 16.000 euros/ano e na Segurança Social seja de apenas 5.500 euros/ano é justo? Claro que não! E só assim é porque vivemos anos e anos de abusos com funcionários públicos a reformarem-se com os ordenados de Directores Gerais ou Subdirectores e porque há categorias profissionais com "esquemas" escandalosos de reforma (é que nem é preciso falar dos políticos!).
O sistema de saúde gratuito para todos faz sentido? Não! Deve ser absolutamente gratuito para quem tem muito pouco e deve ser pago, de forma progressiva, por quem tem rendimentos mais altos. E, a partir de um certo tecto de rendimentos, deve ter um custo equivalente ao custo que a prestação dos mesmos cuidados teria no privado.
Faz sentido que o Estado mantenha um sistema público de educação quando no ranking das 50 melhores escolas apenas duas (repito, DUAS) sejam públicas? Não! Dê-se autonomia às escolas e liberdade aos pais, calcule-se o custo por aluno e implemente-se um sistema de cheque ensino.
Todos estes são exemplos que provam que o que o Relatório do FMI (já infame) não é disparatado e não é o coveiro nacional. Contém uma boa análise da situação de base e apresenta algumas boas soluções.
É impossível pensarmos numa reforma do Estado (ou refundação) que não mexa na função pública, nas prestações sociais, na saúde e na educação. Os cortes serão duros mas são necessários. Não podem ser cegos, mas devem promover uma verdadeira justiça social. O Estado tem que se reduzir ao essencial e retirar-se de inúmeros sectores onde os privados fazem mais e melhor (e por menos dinheiro!). Assim, poderá canalizar recursos para as suas funções essenciais (que passará a prestar de forma mais eficaz e mais eficiente) e reduzir o peso dos impostos, libertando assim a economia, as famílias e as empresas.
Por fim, o que o Relatório do FMI esquece (porque, porventura, não lhe foi pedido que se debruçasse sobre isso) são, nomeadamente, os anos e anos de má gestão dos recursos públicos (os nossos impostos) canalizados para obras megalómanas que serviram para encher os bolsos de alguns; a pequena corrupção; as corporações e o amiguismo que parasita o Estado; o desperdício e a gestão danosa; os privados que vivem à conta e por conta do Estado; as empresas públicas ou quase públicas que são sorvedouros de recursos e todos os demais cancros do nosso Estado, os quais são já bem conhecidos. E estes cancros têm que ser extirpados, sob pena de nos continuarem a matar, lentamente, bem para lá da dieta imposta.