domingo, outubro 14, 2012

Always the hours



Vivemos numa sociedade consumista. E não falo do consumo de coisas. Falo do consumo do tempo. A nossa sociedade consome, vorazmente, o tempo. Todos corremos. Todos nos apressamos. Todos ansiamos por estar lá mais à frente, num futuro que nunca nenhum Homem pisou, mas que nós queremos consumir, já, agora: o e-mail que nunca mais recebemos. O prazo que não passa. As férias que nunca mais temos. O Natal que não chega. O livro que não acabamos. O filme do qual não conhecemos o final. Tudo é cortado, antecipado, resumido para mais depressa chegarmos à conclusão, ao final. Ao futuro. Como se algum dia pudéssemos ser rápidos o suficiente para chegar ao futuro(!).

E com isto não percebemos – pelo menos eu não percebia – que a única coisa que estamos verdadeiramente a antecipar é o limite da nossa própria finitude. Porque nós, por mais que nos custe, estamos limitados no tempo. E é por isso mesmo que ele é precioso. Cada instante de vida. Cada momento. Cada nano-segundo das nossas vidas consumido é menos um pedaço de vida que nos resta. E ao cavalgarmos os minutos, os dias, as semanas, os anos, é a vida que estamos a cavalgar. Consumindo-a (queimando-a) sem viver verdadeiramente. 

Cada vez mais penso em como o tempo voou dos meus 20 anos para agora. Em criança, pelo contrário, tudo durava mais tempo. E porquê? Porque tudo era vivido intensamente. Tudo era descoberta. Tudo era fascínio. Tudo era feito, ainda que instintivamente, com uma reverência absoluta pela vida que estávamos a descobrir. Em crianças éramos plenos de sonhos e de esperanças, mas não tínhamos consciência do tempo (ou tínhamos e lidávamos com ela como os sábios). Por isso não o queríamos apressar. Vivíamos. Andávamos devagar. Líamos devagar. Corríamos devagar. Sonhávamos devagar. Porque estávamos a aprender. Porque não sabíamos fazer mais depressa, nem sentíamos essa necessidade. Lembro-me de em criança querer ser “grande”, mas lembro-me de não ter pressa para lá chegar (porque tinha muito tempo. Tinha (achava eu) todo o tempo). Preferia brincar com as minhas bonecas ou ler os meus livros de aventuras numa tarde que demorava, de facto, todas as suas horas a passar.

Mas depois, chega a adolescência, e com ela a certeza de que o nosso tempo é finito. E começa a correria. Queremos ser adultos. Queremos ter 18 anos. Queremos ir para a faculdade. Queremos namorar. Queremos ser independentes. E corremos. Corremos muito depressa, com toda a força das hormonas. Nada nos pára. Nada nos sossega. Nada acalma essa ânsia imensa de tudo fazer, de tudo experimentar, de tudo consumir.

E, depois, essa correria nunca mais pára. Entranha-se de tal modo em nós que acreditamos que correr é o único caminho possível. Entramos no ritmo e continuamos a correr durante os 20, com a força da curiosidade. Durante os 30, com a ânsia do que não fizemos ainda. E por aí fora até o confronto com a morte se tornar cada vez mais iminente. Aí paramos e começamos, de novo, a viver lentamente. Tentando fazer esticar os dias às suas 24 horas, para que cada mês tenha 30 dias e cada ano 365. 

Mas será preciso esse choque brutal e tardio com a nossa finitude para que deixemos de consumir horas, que se somam em dias, que se transformam em anos? Não. Basta parar. Acalmar e sentir que a vida não é uma corrida. A vida não tem que ser apressada, mas aproveitada. A vida não tem que ser consumida, mas vivida.

Talvez eu seja, afinal, uma felizarda por me terem feito perceber isto aos 31 anos. Podia ter passado uma vida inteira sem perceber o prazer de deixar cada minuto ter os seus 60 segundos. Sejam esses 60 segundos de ansiedade, de tédio, de prazer ou de irritação. Sejam passados no cinema, no trânsito, no trabalho ou com aqueles que amamos. São 60 segundos da nossa vida e por isso são preciosos. São 60 segundos que nunca mais vamos viver e que se perdermos, nunca mais poderemos recuperar. Por isso temos que os vivenciar tão plenamente quanto a nossa limitada capacidade de sentir nos permitir.

E hoje, sabendo isto, arrependo-me por cada livro que consumi, vorazmente, procurando chegar rapidamente ao fim. Com isso, perdi o prazer de todas as horas em que ele me poderia, afinal, ter acompanhado. Talvez por isso, de cada vez que terminava um livro sentia tristeza. Sentia saudades. Saudades de todos aqueles momentos dolentes que podia ter passado com ele por companhia e que apressei, para chegar mais depressa ao final que era, afinal, nada mais do que a sua perda.

O mesmo por cada filme que vi ansiosa por chegar ao fim. Perdi todos os momentos em que podia ter apreciado a banda sonora. A forma como ele foi filmado. A interpretação dos actores. Todos os estímulos sensoriais e intelectuais que escapavam a quem procurava apenas saber o final da história. Porque a vida, afinal, é tudo o que acontece antes do final da história!

E, infelizmente, o mesmo para a minha vida. Tudo foi consumido com a ânsia de estar lá à frente. Com a ânsia de chegar. Com a ânsia de ganhar um futuro que, afinal, nunca foi mais do que ilusão. A correria sem destino, porque o único destino era impossível de alcançar: o futuro.

A metáfora recorrente na minha vida, a “de entrar no mar pelo meio” não poderia ser mais descritiva dessa ânsia de consumo de momentos. De queimar etapas da vida. Hoje sei que há que entrar no mar pela rebentação e aproveitar isso. Fazer o percurso, sem pressa. Olhar à volta e sorrir ao tempo. Porque o tempo, afinal, não é o nosso inimigo, porque não estamos numa corrida. O tempo é o nosso aliado, porque estamos num passeio.

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